Fortuna Critica

Entre afetos e aforismos



Robson Pereira Gonçalves
Professor e crítico de arte
maio/2014

Leonardo Brasiliense mantém em seu último livro – Corpos sem Pressa – a coerência temática dos anseios subjetivos, que se firmam desde o seu livro de ficção de estreia, Meu sonho acaba tarde. Vale dizer, o jogo entre subjetividade afetiva e a objetividade da palavra escrita permanece como húmus de sua literatura. Os estranhamentos, próprios do fazer literário, estão presentes, tanto na forma aforística de seus minicontos como também no desassossego em externar afetos.

Muito embora possamos intuir assombros e aturdimento frente à angústia que se apresenta nessas ditas narrativas minimalistas, podemos afirmar que são as interdições internas e, também, da vida que tomam corpo e se firmam como incompletude do ser humano. Reside aí o lado jocoso da existência que, numa esteira crítica, é representado com ironia, com mordacidade que ressalta os contrários, os oximoros, da vida prosaica.

Corpos sem Pressa não se configura como uma obra bizarra, excessiva em sua sintaxe, todavia cumpre, em seu minimalismo, a nos lembrar das vicissitudes que carregamos, das interdições que idealizamos frente as asperezas do cotidiano. São os afetos representados, mesmo em sua forma mais primitiva, que regem as equações entre o desejo e o seu interdito, entre o sonho e o confronto do dia a dia. A neurose é, desta maneira e sem piedade, confrontada com o sarcasmo que desmitifica as desmedidas e, claro, as ditas certezas que todos carregamos.

Somos todos regulados e amaldiçoados, como Sísifo, pelas leis do significado e do sentido, pela busca de uma certeza e de uma razão que, via de regra, se afastam da realização de nossos desejos. Aqui os afetos nos informam, se tivermos a vista clara, que os desatinos são próprios daquele embate entre nossas internalizações e o que a vida se nos apresenta e, se conseguirmos evitar um destino funesto, talvez o fardo sísifico não se transforme numa perversão sem medidas. O perverso é um onipotente que deifica suas ações, que tenta ascender a um Olimpo imaginário, nada mais justo que suba a montanha com o peso da vida. Ironia e sarcasmo são em Corpos sem Pressa uma espécie de reguladores da pressão desses afetos mal alinhavados, mal encaminhados em nosso cotidiano.

Quando presenciamos inveja, ganância e veneração estamos nos referindo aos afetos que têm a intensão imediata, de curto alcance, em disponibilidade às nossas pulsões. Esses afetos são associados, via de regra, a um futuro imediato carregado de uma inautenticidade, por isso que dizemos de sua negatividade. Todavia, quando nos referimos a angústia, medo, esperança e fé temos em mente uma intenção pulsional a longo termo, isto é, os objetos da existência não estão disponíveis imediatamente, porém almejam fecundidade. São esses afetos, portanto, que nos distinguem uns dos outros e, mais importante, servem para estabelecer nosso lugar na vida.

Por mais tensas as gradações sarcásticas que se apresentam em Corpos sem Pressa, há uma maneira - um maneirismo - de expectativa afetiva da esperança como um nó positivo. O leitor confrontado com as aberrações do cotidiano, tem utopicamente e, melhor, ad futurum, uma fé de superação da angústia, do medo, da opressão. É o seu estar aí frente ao ato poético que engendra a literatura e as grandes artes, o que provoca em nossa fruição, nossa leitura, aquela sensação de possível redenção. Esse ímpeto é, deveras, o que afirma que não analiso, como verdade e sentido pleno, e ou critico um texto ou uma pintura, mas que sou analisado e colocado às claras em meus afetos por ele. Essa é a função dos afetos no leitor e, se quiserem, nos críticos...

A percepção que tenho dos minicontos é a de que são vestidos e/ou revestidos de uma perspectiva aforística. Nessa direção, os aforismos não se concluem como máxima ou sentença, todavia explicitam princípios, nunca regras, de alcance moral. A escrita minimalista se irmana a um estilo fragmentário, pois é sucinta, e remete a uma reflexão de natureza prática, não tão filosófica que nos permitiria juízos éticos. O que se pode perceber é que essa escrita, dita aforística, se volta crítica a um estado de coisas tanto em relação à vida em sociedade, à cultura, como aos tipos que a compõem.

Corpos sem Pressa, se assim determinarmos aquela influência, requer, como os aforismos, reflexões que desestabilizam as certezas do dia a dia, da experiência do cotidiano. Esse Desiderio, como que ilumina aqueles aspectos de nossa experiência e da realidade até então ignorados, daí a percepção irônica e sarcástica dos fatos da vida. Tal qual a relevância da interpretação moral filosófica, os minicontos de Leonardo Brasiliense esperam aclarações, tanto por poder serem lidos ao contrário como pela necessidade imperiosa de decifrar seu sentido.

Os minicontos de Corpos sem Pressa nos levam a uma constatação: a escrita aforística requer, solicita, um fôlego de leitura e interpretação mais demorado. Fôlego em dupla dosagem, tanto do Autor em redigi-los, em inventá-los, como também do leitor em lê-los, em interpretá-los. Nessa medida, é que se irmanam os afetos, em qualquer de suas dimensões, porém aptos a nos encaminhar e, melhor, nos responsabilizar pelas nossas idiossincrasias desmedidas. Vale dizer, a literatura é a ponte para uma espécie de consciência das palavras, tanto as que proferimos e externamos como pela linguagem sintomática de nossos sinais mais subjetivos.

Como diria John Lennon: “viver é fácil quando se tem os olhos fechados. Desentendendo tudo o que se vê, está ficando difícil ser alguém, mas tudo funciona em acordos, mas isso não me importa muito”. Este excerto da canção Strawberry fields forever, decididamente afetiva e onírica, é exemplar como estranhamento entre o desejo e toda a carga subjetiva e as amarguras da vida vivida. Não deveríamos só pensar que o sonho acabou, todavia ter fé e esperança que os anseios, a angústia e o medo possam ser medidos na nossa verdadeira dimensão.

Quero crer que Leonardo Brasiliense ausculta aquela sinalização.

 

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